O texto a seguir foi extraído do livro TRATADO DE DIREITO DESPORTIVO (pag. 483 a 500). Autor: José Ricardo Rezende
CAPÍTULO 13 - DA PRÁTICA DESPORTIVA NÃO-PROFISSIONAL
De acordo com a Lei nº 9.615/98 o desporto de rendimento pode ser organizado e praticado de modo profissional ou não-profissional, nos exatos termos do art. 3º e seu parágrafo único. O primeiro modo é “caracterizado pela remuneração pactuada em contrato formal de trabalho entre o atleta e a entidade de prática desportiva”. Já o segundo é “identificado pela liberdade de prática e pela inexistência de contrato de trabalho, sendo permitido o recebimento de incentivos materiais e de patrocínio”. Em comum, atendem à mesma finalidade de “obter resultados e integrar pessoas e comunidades do País e estas com as de outras nações”.
Assim sendo, a atividade desportiva de rendimento, a teor da lei de normas gerais, pode ser, ou não, enquadrada como uma relação de emprego. Neste capítulo vamos abordar, especificamente, o desporto de rendimento organizado e praticado de modo não-profissional. Diga-se, desde já, que esse é o modo adotado por praticamente todas as modalidades esportivas desenvolvidas no país, à exceção do futebol, que, obrigatoriamente, na forma do art. 94 da mesma lei, deve adotar a versão profissional, sendo facultativa essa opção às demais modalidades, a teor do seu parágrafo único.
Ou seja, de acordo com a legislação brasileira, a organização e prática do desporto de rendimento de modo não-profissional é a regra geral, sendo o profissionalismo uma exceção futebolística. Contudo, apesar da evidente importância da matéria, seu estudo doutrinário é pouco desenvolvido, quase inexistente. Não bastasse, é objeto de sérias divergências jurisprudenciais no âmbito da Justiça do Trabalho, conforme será exposto. Completa esse quadro a precariedade de regulamentação da prática não-profissional no âmbito da legislação estatal e da lex sportiva. Isso somado, evidencia a insegurança jurídica que afeta aos muitos que atuam neste segmento. É nosso desejo, portanto, neste capítulo, trazer ao debate minucioso essa importante matéria do Direito Desportivo, identificando as lacunas na lei e nas normas das entidades de administração do desporto, as divergências de interpretação e as alternativas, ainda que mínimas, para conferir maior estabilidade nas relações jurídicas havidas entre entidades desportivas e atletas, por este modo frequente de realização do desporto de rendimento.
13.1. A FINALIDADE DE OBTER RESULTADOS E INTEGRAR PESSOAS
De início, chamamos atenção para o fato do reconhecimento legal da possibilidade de organização e prática do desporto de rendimento de modo não-profissional, ao lado do profissional. À primeira vista, pode parecer algo sem maior importância, senão no sentido de sinalizar a existência (ou não) de um contrato formal de trabalho entre o atleta e a entidade de prática desportiva. No entanto, considerando que a finalidade do desporto de rendimento é a mesma, independente de realizar-se de modo profissional ou não-profissional, qual seja, buscando a “obtenção de resultados” (por meio de competição), torna-se evidente que estes somente serão alcançados (produzidos) com base na especialização (adestramento) dos atletas, circunstância que demanda treinamento intenso, regular e regime de dedicação específica à respectiva modalidade esportiva, principalmente diante da proposta de “integrar pessoas e comunidades do País e estas com as de outras nações”, conceito reforçado pelo art. 3º, inc. III, do Dec. nº 7.984/13, in verbis:
Ou seja, o que integra as “pessoas e comunidades do país”, através do esporte de rendimento, são as competições regionais, estaduais e nacionais organizadas pelas entidades de administração do desporto (Federações, Confederações e Ligas), “e estas com as de outras nações”, as competições internacionais organizadas pelas entidades transnacionais de administração de desporto, como é o caso dos torneios continentais, campeonatos mundiais e Jogos Olímpicos e Paralímpicos. Logo, para obtenção de “resultados de superação ou de performance relacionados aos esportes” dentro dessa escala de grandeza, é função esperada dos clubes (entidades de prática desportiva) exercer o papel de direção das atividades (planejamento, organização, controle e disciplina), ou seja, articulando recursos, determinando objetivos e metas, estabelecendo a rotina de treinamentos em local apropriado sob desígnio de uma comissão técnica especializada, selecionando atletas e fixando as obrigações relativas ao uso de uniformes e equipamentos esportivos, cuidando para que o praticante mantenha excelente condição atlética, inclusive por meio de um regime de alimentação balanceada, demandando o cumprimento de horários rígidos e programas de preparação física, técnica e tática, associada à necessidade constante de deslocamentos para participação em competições, tudo de acordo com regulamentos e normas internas e das entidades de administração do desporto.
13.1.1. Realização de um objetivo comum e vínculos necessários: Assim unidos e comprometidos, cada clube e seu plantel de atletas busca a obtenção de resultados dentro de competições organizadas regularmente pelas entidades de administração do desporto. Há, portanto, uma relação simbiótica entre as partes, na qual ambos são beneficiados ao buscarem atingir um objetivo comum, compartilhando glórias e fracassos durante a jornada esportiva. Essa é a dinâmica secular do desporto na vertente do rendimento. Consortes, o clube depende do atleta e este daquele, para que possa acontecer a prática do desporto formal, salvo raras exceções, possíveis apenas no âmbito das modalidades individuais (ex.: atletismo, tênis, automobilismo), através da filiação direta de atletas junto a entidades de administração (registro avulso). Porém, nas modalidades coletivas (ex.: basquete, futsal, voleibol, handebol), a atividade dos atletas dependerá sempre da iniciativa de um clube em estruturar uma equipe e inscrevê-los em competições. Por isso se qualificam como entidades de prática desportiva, cumpridora de relevante função social dentro do Sistema Nacional do Desporto (Lei nº 9.615/98, art. 13), especialmente quando constituída na forma de associação de fins não econômicos (sem fins lucrativos), merecendo assim permanente proteção do Estado, posto ser o seu dever fomentar as práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um (CF/88, art. 217). “No Brasil, o associativismo releva-se como um instrumental a serviço dos cidadãos para o exercício de direitos” (GARCIA, 2007, p. 59). Essa cadeia de relações necessárias (vínculos desportivos) para que floresça na sociedade o desporto de rendimento, é inclusive prevista na Lei nº 9.615/98, conforme segue:
Em bom termo, o que se espera no âmbito da prática desportiva de rendimento é uma sinergia entre clube e atleta, uma coesão em prol do objetivo maior de alcançar resultados em competições organizadas pelas entidades de administração, cada qual cumprindo um papel, sendo que a lei admite que essa relação se estabeleça de modo profissional ou não-profissional, isto é, reconhecendo o atleta com um empregado do clube sob o manto de um contrato de trabalho e garantias previdenciárias, ou não, neste caso, “sendo permitido o recebimento de incentivos materiais e de patrocínio”. Inexistindo obrigatoriedade jurídica, a definição do modo como irá se estabelecer o vínculo desportivo entre o clube e o atleta dependerá da livre negociação entre as partes, conforme se deflui da leitura do art. 26 da Lei nº 9.615/98, in verbis:
Por óbvio que a opção pelo vínculo profissional decorrerá, fundamentalmente, diante da expectativa de participação em competições profissionais, nos termos do parágrafo único, conforme venham a ser organizadas pelas entidades de administração e ligas da respectiva modalidade (vide 13.7).
13.1.2. Proibição do profissionalismo: Se por um lado a legislação assegura facultatividade na organização e prática do desporto de rendimento de modo profissional (obrigando apenas o futebol), de outro veda a prática do profissionalismo em determinadas situações, conforme segue:
Trata-se de uma determinação que remonta ao período anterior à Constituição de 1988, tanto que mantém a terminologia da época. Mais que isso, revela-se como norma despropositada, considerando que o modo profissional de organização e prática está vinculado ao conceito do desporto de rendimento, na forma do art. 3º da Lei Pelé. Logo, naturalmente não há de se falar em profissionalismo no desporto educacional (e também no desporto de participação). Tampouco as Forças Armadas brasileiras (desporto militar) podem ser qualificadas como entidades de prática desportiva, aptas para formalização de Contratos Especiais de Trabalho Desportivo. Por fim, a mesma lei já cuida do enquadramento não-profissional da atividade dos menores de dezesseis anos, por meio dos contratos de formação desportiva.
13.1.3. Natureza da atividade do atleta de rendimento: Diante das colocações feitas até aqui, percebe-se que o legislador brasileiro reconheceu duas formas legítimas de vínculo desportivo (profissional e não-profissional) frente à realização de uma mesma atividade (desporto de rendimento). Nesse ponto, antes de prosseguirmos, é fundamental esclarecer a diferença entre relação de trabalho e relação de emprego, diante de um contrato de atividade, que segundo Jean Vicent, citado por Orlando Gomes e Elson Gottschalk (2000, p. 27) e replicado por Alice Monteiro de Barros (2005, p. 199), serve para designar “todos os contratos nos quais a atividade pessoal de uma das partes constitui o objeto da convenção ou uma das obrigações que ela comporta”, observando em seguida que “os contratos de atividade geram uma relação de trabalho, da qual a relação de emprego é uma espécie”. Logo, é certo que nem toda a relação de trabalho preconiza a existência de uma relação de emprego.
Nesse passo, à luz da melhor doutrina do Direito do Trabalho, é perfeitamente adequado o critério adotado pelo legislador brasileiro, ao enquadrar a atividade desportiva de rendimento como sendo materializadora de uma relação jurídica de emprego ou não, conforme venha a ser convencionado entre o clube e o atleta, no gozo da facultatividade inserida no parágrafo único do art. 94 da Lei Pelé. No mesmo sentido é o julgado que segue.
Pode-se dizer então, para fins didáticos, que o desporto praticado de modo não-profissional se aproxima do conceito de trabalho voluntário, regulado pela Lei nº 9.608/98, que de igual modo (quando adequadamente constituído), “não gera vínculo empregatício, nem obrigação de natureza trabalhista previdenciária ou afim”, sendo a concessão de incentivos materiais ao atleta similar a ajuda de custo paga ao prestador de serviço voluntário, como a diferença dos incentivos serem bem mais amplos e permissivos, inclusive instrumentalizado por meio das chamadas bolsas, além de comportar o patrocínio, conforme adiante será estudado.
13.1.4. O equívoco da interpretação restritiva da atividade desportiva não-profissional: Em alguns julgados da Justiça do Trabalho encontra-se na fundamentação a identificação de caráter não lúdico da atividade do atleta, para fins de justificar o convencimento do magistrado quanto ao reconhecimento do profissionalismo. Ou seja, o fato de ficar provado na fase instrutória do processo, de que o atleta-reclamante obedecia a um rígido esquema de treinamento e regular participação em competições organizadas pelas entidades de administração do desporto, aliado ao recebimento de valores em pecúnia, seriam suficientes para provar que não se tratou de uma atividade exercida com espírito lúdico, por prazer e diversão, merecendo assim ser reconhecida como uma relação de emprego (modo profissional). Ocorre que esse entendimento deixa de considerar que o modo profissional e não-profissional de organização e prática são espécies do gênero desporto de rendimento, cuja finalidade é a obtenção de resultados em competições organizadas dentro de uma ótica formal, sendo que o aspecto lúdico está relacionado à prática não-formal, desdobrada em desporto de participação. De igual modo, é erro grosseiro de defesa alegar ludicidade como argumento para tentar afastar a caracterização do exercício de atividade profissional, sendo desatualizada a doutrina, posterior à publicação da Lei nº 9.981/00, que insiste em qualificar atletas, em contraposição aos profissionais, como sendo “amadores” diletantes que exercitam o desporto por “prazer e diversão” (BARROS, 2005, p. 280). Enfim, não é da natureza conceitual do desporto de rendimento a destinação lúdica, pois ela não se ajusta à finalidade de obter resultados em competições nacionais e internacionais.
13.2. REGIME JURÍDICO DO DESPORTO PROFISSIONAL E NÃO-PROFISSIONAL
Nas condições até aqui reportadas, nota-se que o desporto de rendimento organizado e praticado de modo profissional é interpretado como atividade econômica e fator de produção, equiparando clube a empresa e atleta a empregado, de modo que é regulado pelo Direito Desportivo e Direito do Trabalho, sendo essa determinação expressa no art. 29, § 4º da Lei nº 9.615/98 (Aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais da legislação trabalhista e da Seguridade Social, ressalvadas as peculiaridades constantes desta Lei, ...), enquanto o não-profissional é encarado como uma função social e direito de cada um, sedimentado pelo Direito Desportivo e Direito Civil.
13.2.1. Interesse contraposto x interesse comum: Dessa forma, a bipolaridade jurídica do desporto de rendimento é uma realidade social legalmente reconhecida e assegurada, ao identificá-lo como atividade econômica sujeita aos riscos do negócio, que contrata, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços desportivos (modo profissional / interesse contraposto), sem descartar a possibilidade de sua realização também como atividade não econômica, de modo que o exercício de uma mesma atividade individual desportiva não configura necessariamente uma relação de emprego (modo não-profissional / interesse comum). Antecipe-se, no entanto, que o atleta na condição de não-profissional, diferentemente do atleta profissional, exerce a atividade desportiva com facultatividade, de maneira que não é subordinado juridicamente ao poder de direção do clube, podendo desobedecer ordens ou deixar de praticar o desporto a qualquer tempo, sem que isso caracterize uma violação de dever ou implique na obrigação de indenização, conforme será estudado adiante.
13.2.2. Fator de produção x função social: Conforme afirmado, uma mesma atividade desportiva de rendimento é tratada de modo diferenciado pela legislação, ao subsumir a finalidade de “obtenção de resultados”, de um lado, como fator de produção (modo profissional), colocando clube e atleta em posição de alteridade (interesses contrapostos), “o que significa ser o trabalho executado em favor de outrem, que aufere os frutos do trabalho de alguém e, portanto, deverá assumir os riscos do empreendimento (BARROS, 2005, p. 213); e de outro, como função social (modo não-profissional), executada em favor de uma causa de interesse comum, sob proteção da lei, sendo albergada essa diferenciação pelo art. 217, inciso III, da Constituição Federal de 1988.
13.2.3. O equívoco interpretativo entre “amador” e “não-profissional”: Ao contrário da tese que estamos a defender, muitos interpretes da legislação em questão entendem como inadmissível o reconhecimento da licitude do vínculo não-profissional entre atletas e entidades de prática desportiva para fins de disputa de determinadas competições de alto rendimento, como é o caso dos campeonatos estaduais, nacionais e mesmo internacionais, principalmente os de modalidades coletivas da categoria adulto, diante do grau de especialização e envolvimento inicialmente explanado, qualificando-os como a execução de uma atividade-trabalho sob proteção da CLT, em detrimento da norma constitucional e do disposto na Lei nº 9.615/98 enquanto lex specialis, ou seja, fazendo tabula rasa dos princípios da diferenciação e da especialização. Entretanto, é inconteste que a lei de normas gerais não estabelece limites para a organização e prática do desporto de rendimento de modo não-profissional (senão excetuando o futebol e o vínculo do atleta estrangeiro), por exemplo, limitando-o aos menores de 21 anos, ou proibindo a captação de patrocínios e destinação de incentivos materiais na forma de bolsas e auxílios financeiros, senão exatamente o contrário, diante do preconizado no Dec. nº 7.984/13, que regulamenta a lei de normas gerais sobre desportos, conforme será visto adiante. Para muitos é intolerável que a legislação admita uma situação dessas, em que as principais competições e ídolos do esporte brasileiro (à exceção do futebol), via de regra, sejam tratados como não-profissionais. E nesse ponto estamos diante do mesmo fenômeno da inconveniente conceituação verificada em razão da prática desportiva formal e não-formal (vide 11.4.5). Lá como cá, o interprete apressado chega à conclusão de que a competição e o atleta não-profissional são a síntese do antigo “esporte amador”, com todas aquelas restrições vistas ao final do capítulo anterior, em especial a impossibilidade de geração de receitas robustas pelo clube e a obtenção de ganhos pelo atleta, como se isso fosse um “pecado capital”, uma imoralidade. Orlando Gomes (2002, p. 184), citando De Page, lembra que “a confusão de palavras acarreta sempre a confusão de coisas”. Nessas circunstâncias, melhor seria se o legislador tivesse adotado a definição “atleta incentivado” (ou patrocinado), para o praticante do desporto organizado de modo não-profissional, dando origem ao conceito subjacente de “competição incentivada” (ou patrocinada), como de fato quase todas são em nível de rendimento (ou podem ser, de acordo com a lei). Restaria assim melhor posicionada a situação do atleta e da competição de que participa, evitando a exumação do “esporte amador” desprovido de recursos externos, lembrando que ele foi morto e enterrado com a publicação da Lei nº 9.981/00, apesar de parte da doutrina e da jurisprudência ressuscitá-lo como um zumbi, assombrando os dirigentes de clubes ao fazer confusão e embaralhar conceitos absolutamente antagônicos, revelando perigoso desconhecimento (ou descontentamento) quanto à possibilidade de circulação de riquezas na esfera do desporto organizado e praticado de modo não-profissional, fato que torna essas figuras jurídicas (amador e não-profissional) absolutamente distintas e incompatíveis, a recomendar que não sejam equiparadas.